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Pandemia

Um pouco de afeto em meio à guerra

  • Letícia acredita que a sensibilidade feminina facilita o atendimento, deixa o paciente mais confiante e confortável

    Mauro Maciel

"Quando a gente perde um paciente, a gente perde o amor da vida de alguém". A frase é da enfermeira Letícia Franciele de Farias, que trabalha no Centro de Triagem, em Lages, e relata como é o atendimento em uma unidade lotada por pessoas, algumas em estado gravíssimo em função da Covid; local onde os funcionários se desdobram para suprir a ausência dos colegas que também contraíram o vírus e temem contaminar suas próprias famílias. Apesar de tudo, a prioridade é oferecer um tratamento humanizado.

Para Letícia, o fato de ser mulher facilita o atendimento. Ela sempre procura se colocar no lugar do paciente, saber o que aquela família está sentindo. Ela percebe esse vínculo, principalmente quando o paciente é idoso e será entubado. Ele precisa retirar toda a roupa, e geralmente fica constrangido. "A gente sempre explica ao máximo como será o procedimento. O objetivo é deixá-los mais confortáveis. Percebo que eles ficam mais tranquilos quando são atendidos por uma mulher, ficam mais seguros."

Letícia é de Otacílio Costa, tem 25 anos e, assim que se formou, buscou colocação em Lages. Sempre gostou de cuidar de pessoas, principalmente dos idosos e isso a estimulou a cursar enfermagem. Com esse mesmo objetivo, também atua como bombeira comunitária. Em Lages, trabalhou como supervisora de estágio em um colégio. Nesta época, ainda morava em Otacílio Costa e viajava todos os dias. Depois, passou em um processo seletivo e foi contratada pela Prefeitura de Lages para atuar na estratégia de Saúde da Família, no posto de saúde do Bairro Várzea.

Quando iniciou a pandemia, em março de 2020, a prefeitura resolveu montar o Centro de Triagem na estrutura do antigo Pronto Atendimento Tito Bianchini e chamou voluntários. Letícia atendeu ao apelo. "Perguntaram se estaria disponível para ajudar e, no mesmo momento, já me prontifiquei. Estou no Centro de Triagem desde o dia vinte e três de março do ano passado. Foi a gente que abriu a estrutura. Faz pouco mais de um ano, porque começamos duas semanas antes para montar a estrutura."


Ela nunca imaginou enfrentar uma situação dessas

"Eu sempre falo que não imaginava conseguir um serviço tão rápido e ao mesmo tempo uma experiência tão grande. Porque você trabalhar na estratégia da família é uma coisa, vir trabalhar no Centro de Triagem e atender pacientes graves, uma doença que desafia até a própria equipe, que já tem uma certa experiência e médicos com anos de profissão; é uma sensação desafiadora.

Para a enfermeira, são cenários inéditos que os profissionais da área da saúde nunca imaginaram passar. Todo mundo vai aprendendo com a pandemia. "Todo dia a gente vai inovando, se virando, se adaptando, porque muitas vezes a gente se depara com uma cena que não esperava".

Ela comenta que a equipe do Centro de Triagem está preparada para atender pacientes com covid, mas já recebeu pessoas enfartadas, com AVC e até grávidas. Como a situação exigia pronto atendimento, médicos e enfermeiros não mediram esforços para estabilizar os pacientes.

Faltam funcionários

Na segunda-feira (15), Letícia Franciele de Farias não estava de plantão, mas ficou sabendo que havia poucos funcionários e foi trabalhar a partir das 20 horas. Ela comenta que, a exemplo de outros locais do Brasil, o Centro de Triagem está com falta de funcionários, muitos estão doentes, outros afastados ou tem crianças e idosos em casa e estão com medo de contaminá-los.

"Então a gente tem que vestir a camisa. A carga de trabalho é pesada e muitos profissionais ainda trabalham em mais de um lugar. Tem gente que trabalha mais de 12 horas por dia. Têm funcionários que até excedem o que é permitido, mas fazem isso porque o número de profissionais é muito pequeno."

A Prefeitura de Lages quer contratar, abriu vários processos seletivos, mas não tem candidatos. Geralmente, as pessoas se inscrevem, são aprovadas e desistem da vaga ao saber que trabalharão no Centro de Triagem.


Gratidão

Na maioria das vezes, Letícia avalia que os pacientes reconhecem o atendimento que recebem e são gratos aos profissionais, o que significa muito para ela e seus colegas. É um sentimento de gratidão. Em contrapartida, tem algumas pessoas que reagem de uma forma mais bruta, não tem paciência de esperar, não entendem que não tem profissionais em número suficiente, que a fila está parada porque uma pessoa está sendo entubada pelo médico. Mas esses casos são considerados minoria pela enfermeira. Quase sempre as pessoas agradecem e incentivam os profissionais a continuarem combatendo o vírus.


Clima de guerra e aprendizado

"Quando estava na faculdade, os professores falavam da origem da profissão, de como as coisas eram rudimentares. Meu avós contavam da época em que se utilizava seringas de vidro. Hoje estamos em um clima de guerra, mas com o suporte da tecnologia." Letícia lembra que muitas pessoas estão morrendo, o que deixa todos muito tristes, mas para ela a pandemia oferece uma oportunidade de adquirir conhecimento e de crescimento profissional. "Dificilmente quem (os profissionais) não passou pela pandemia conseguirá chegar a este patamar. A tendência é que o País também tenha uma melhor estrutura de saúde após a pandemia."


O medo de contaminar a família

Antes da pandemia começar, Letícia visitava sua família todos os finais de semana. Com medo de transmitir o vírus, cessou com as viagens. A saudade apertou e decidiu ver o avô que tem 85 anos, a avó com 80 anos e os pais que possuem mais de 60 anos e também estão no grupo de risco.

Ela lembra que permaneceu sempre de máscara. Nas refeições, ficou próxima da porta e bem longe da mesa onde estavam os familiares. A seu pedido, a família deixou um banheiro somente para a moça. Depois o ambiente passou por uma higienização profunda.


Ela já estava contaminada

Letícia fez a visita em um sábado. Na segunda-feira começaram os primeiros sintomas e o exame confirmou que ela estava contaminada pelo coronavírus. "Fiquei desesperada e o coração apertou. Temia ter passado o vírus para eles, que nem estão saindo de casa por medo da doença."

Os sintomas foram se agravando e ela demorou a reagir ao tratamento feito em casa. O médico até cogitou interná-la. Ela demorou 39 dias para se recuperar. "Tenho 25 anos e já tive problemas. Ficava pensando, será que pegaram? Será que contaminei minha família. felizmente ninguém foi contaminado? Quando comecei no Covid, sabia dos riscos. Pensava que poderia pegar, mas acreditava que seria daquelas pessoas com sintomas leves ou até mesmo assintomática. " Depois do contágio, ela se comunica com a família pelo telefone e eles continuam preocupados com ela.

Muitas mortes poderiam ser evitadas

Questionada sobre o que diria para outras pessoas que pretendem se formar em enfermagem, Letícia diz que sempre as incentivou e não mudou de ideia em função da pandemia, tanto que lecionava sobre o tema. Diz que o trabalho é árduo, mas é uma área bem gratificante, que recebe o reconhecimento e a valorização das pessoas. Ela afirma que quem tiver dúvidas, está disponível para esclarecer.

Ela apela para que a população se cuide. "É muito triste informar para a família que o paciente faleceu, que não terá velório, que não vai ter roupa e que o caixão será lacrado. Não poder dar o último adeus. Nós somos as últimas pessoas com quem os pacientes conversam antes de serem intubados. Alguns confessam que estão arrependidos de terem, saído, participado de uma festa onde contraiu o vírus. Tem muita gente que se contamina trabalhando. Mas tem mortes que poderiam ser evitadas se as pessoas usassem máscara, álcool e evitassem aglomerações," conclui.

Foto: Letícia 2

Crédito: Mauro Maciel

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